Um marco para a proteção das mulheres, a Lei Maria da Penha (11.340/2006) completa 16 anos neste domingo, 7 de agosto. A norma que leva o nome de uma farmacêutica vítima de violência doméstica em 1983 é reconhecida pela Organização das Nações Unidas – ONU como uma das três melhores legislações do mundo no enfrentamento à violência de gênero.
Desde que foi instituída, a norma prevê mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Em entrevista ao Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM no ano passado, Maria da Penha Maia Fernandes reconheceu os avanços dos últimos anos e apontou os desafios para garantir efetividade na aplicação da norma. Leia a entrevista na íntegra.
A professora Adélia Moreira Pessoa, presidente da Comissão Nacional de Gênero e Violência Doméstica do IBDFAM, lembra que a Lei Maria da Penha reconheceu a violência doméstica contra a mulher como um problema de múltiplas dimensões, que não pode ser tratada apenas na esfera criminal. “É uma lei que comporta três eixos principais no enfrentamento da violência doméstica e familiar contra as mulheres: proteção e assistência; prevenção e educação; combate e responsabilização.”
Segundo a especialista, a LMP prevê políticas públicas voltadas para o enfrentamento à violência contra a mulher a partir de um olhar ampliado. “Assistindo-se gradativamente a uma maior atenção à questão, na seara pública e privada foram criadas as várias Coordenadorias (ou Secretarias) da Mulher, no âmbito municipal, estadual e federal da Administração Pública, multiplicando-se os serviços de atendimento à mulher e à família, com a criação de mais delegacias especializadas.”
No Poder Judiciário, acrescenta Adélia, foram instaladas as Coordenadorias da Mulher, em cada Tribunal de Justiça e Varas especializadas para julgar os casos de violência contra a mulher. “O Conselho Nacional de Justiça – CNJ aguçou seu olhar sobre o fato, estabelecendo diretrizes para acelerar o julgamento de ações relativas à violência doméstica e participando de movimento em prol de uma vida sem violência nas famílias.”
Violência doméstica
A professora explica que, com a criação de núcleos, comissões e procuradorias específicas, a mulher adquire força para levar a violência doméstica a que era submetida ao conhecimento das autoridades e consegue ver os resultados. “Com efeito, constata-se um maior número de inquéritos instaurados, nos 16 anos da vigência da lei.”
Segundo Adélia, desde que a Lei Maria da Penha entrou em vigor, novas leis foram editadas para alterar, complementar e aperfeiçoar a norma. “São várias as leis posteriores, ora criando tipos penais, ora estabelecendo mecanismos para prevenção e proteção da mulher e dos filhos.”
A especialista cita, entre elas, a Lei 13.641/2018, que tipificou o crime de descumprimento de medidas protetivas, cuja configuração delitiva independe da competência civil ou criminal do juiz que deferiu as medidas. Menciona também a Lei 13.718/2018 , que acrescentou o art. 218-C, no Código Penal, para tipificar o crime de divulgação por meio de qualquer registro audiovisual, de cena de estupro ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia.
“Ainda em 2018, foi editada a Lei 13.772, que incluiu um novo elemento de violência psicológica contra a mulher: o da violação de sua intimidade. Criminalizou o registro da intimidade sexual sem o consentimento da vítima, acrescentando o art. 216-B no Código Penal”, lembra.
Enfrentamento da violência
Já a Lei 13.827/2019, complementa Adélia, autoriza a aplicação imediata de medida protetiva de urgência e o afastamento do agressor em caso de risco atual ou iminente a? vida ou a? integridade física da mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou de seus dependentes. “Esta lei ainda determinou o registro da medida protetiva de urgência em banco de dados mantido pelo CNJ e que, nos casos de risco à integridade física da ofendida ou à efetividade da medida protetiva de urgência, não será concedida liberdade provisória ao preso.”
“Ainda em 2019, foi publicada a Lei 13.894, sem trazer a relevante alteração do projeto que estabelecia a competência dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar para a ação de divórcio, separação, anulação de casamento ou de dissolução de união estável nos casos de violência e para tornar obrigatória a informação às vítimas acerca da possibilidade de os serviços de assistência judiciária ajuizarem as ações mencionadas, ficando excluída a pretensão quanto à partilha dos bens no Juizado Maria da Penha”, afirma a professora.
Para Adélia, outra norma relevante foi a Lei 13.984/2020, que estabelece como medidas protetivas de urgência a frequência do agressor a centro de educação e de reabilitação e acompanhamento psicossocial, por meio de atendimento individual e/ou em grupo de apoio. Segundo ela, a medida ainda não foi implementada em todas as comarcas, “apesar de figurar esta necessidade de reeducação dos autores da agressão desde a versão originária da LMP”.
Ela aponta que, no ano passado, a Lei 14.132/2021 criminalizou o stalking. No mesmo ano, a Lei 14.188 trouxe um novo tipo penal de violência psicológica contra a mulher e ainda aumentou a pena de lesão corporal leve quando praticada contra mulher.
Avanços normativos
Também citada por Adélia, a Lei 14.149/2021 instituiu o Formulário Nacional de Avaliação de Risco, a ser aplicado a? mulher vítima de violência doméstica e familiar para a prevenção e o enfrentamento de crimes e de demais atos de violência doméstica e familiar. De acordo com a especialista, “o lugar da mulher é no orçamento”.
Ela complementa: “Assim, relevante a Lei 14.316/2022, que destina recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública – FNSP para ações de enfrentamento da violência contra a mulher”.
Conforme a Lei 14.316/2022, no mínimo 5% dos recursos empenhados do FNSP devem ser destinados a ações de enfrentamento da violência contra a mulher. A norma entrou em vigor em março de 2022, com efeitos financeiros a partir do exercício subsequente, em 2023.
“Além de novas leis, é preciso salientar o papel do CNJ e do CNMP que têm feito um trabalho de sensibilização quanto à existência de discriminação e violência contra a mulher, e vários avanços normativos ocorreram, nestes dois últimos anos”, comenta.
Entre os avanços, Adélia também cita a capacitação em direitos fundamentais, a partir de uma perspectiva de gênero, de magistrados, membros do Ministério Público e servidores que atuam em Varas do Júri e em Juizados e Varas que detenham competência para aplicar a LMP. Cita ainda a recomendação pelo CNJ da adoção do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero no âmbito do Poder Judiciário brasileiro.
“É preciso observar ainda que outros segmentos da sociedade, e não apenas os poderes públicos, têm contribuído para a mitigação da discriminação e violência de gênero como Instituições de Ensino Superior e o IBDFAM, entre várias outras entidades que unem esforços para tecer a rede de enfrentamento à discriminação e violência de gênero, para que o acesso das mulheres aos direitos e à justiça seja plenamente efetivado”, reconhece.
Segundo ela, a efetivação do direito humano de a mulher viver sem violência ainda enfrenta inúmeros desafios. “Urge sensibilizar todos os agentes públicos que intervêm nesta seara, não só do Judiciário e do Ministério Público e advocacia, mas também da saúde, educação, assistência social e segurança pública, de modo a amarrar bem os elos dessa rede, para que as intervenções não sejam apenas pontuais.”
“Não só incompreensão e resistência de alguns agentes públicos responsáveis pelos atendimentos e encaminhamentos, há outros desafios diante da- falta de apoio efetivo para as mulheres em situação de violência, no âmbito privado e público. Grande desafio a enfrentar é a criação de programa de atendimento ao homem autor da agressão, que retorna a esta prática, mesmo que em outra família, ocorrendo elevados índices de reincidência específica”, avalia a professora.
Para evitar esse problema, afirma Adélia, é indispensável a responsabilização do autor da agressão mediante intervenções psicossociais, que possam fazer com que o agressor mude seu entendimento e conduta em relação às mulheres.
Estereótipos de gênero
A professora também avalia a necessidade de múltiplas ações educativas e culturais que interfiram nos padrões sexistas, nos preconceitos e estereótipos de gênero. “A própria Lei Maria da Penha e leis posteriores indicam várias medidas de prevenção e, entre essas, aponta ações educativas, tanto dentro das escolas como também por meio da mídia – poderoso instrumento na formação de valores.”
“Sem dúvida, a educação é via indispensável para a mudança de padrões sexistas que permeiam a nossa cultura. Tendo em vista que as próprias normas jurídicas apontam para a premente necessidade de mudar comportamentos – promovendo uma real mudança nos valores sociais baseados nos direitos humanos, com valores éticos, respeito à dignidade da pessoa humana e à diversidade, o caminho adequado só pode ser construído por meio da educação, com a construção de uma perspectiva de gênero e raça nos currículos das escolas, de forma transversal e/ou por meio de outras ações ou programas específicos, com a participação efetiva não só dos profissionais que trabalham na área”, observa.
Adélia conclui que, assim, poderá ser construída uma cultura de paz e respeito aos direitos das pessoas, “para que possamos atingir os objetivos fundamentais do Estado Democrático de Direito, como prevê a CF/88 (art. 3º, I e IV): a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
#ParaCadaUma
Em atenção ao aniversário da norma, a Organização das Nações Unidas – ONU, por meio da iniciativa global Verificado, lança neste domingo a campanha #ParaCadaUma, que trata da violência doméstica e familiar contra mulheres. O objetivo é identificar, nomear e exemplificar cada uma das cinco violências (psicológica, moral, patrimonial, sexual e física).
A iniciativa inclui uma série de ações em diversos estados brasileiros.