Dezoito de maio é o dia nacional de combate ao abuso e a exploração sexual de crianças e adolescentes, instituído a partir do estupro, tortura e assassinato da criança Araceli, aos oito anos de idade, em 1973. Desde então houve grande incremento legislativo no Brasil, mas pouco avanço na proteção efetiva de crianças e adolescentes.
Apesar dos compromissos assumidos desde a aprovação do artigo 227 da Constituição Federal de 1988, do Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990, do Marco Legal da Primeira Infância em 2016 e da Lei da Escuta em 2017, ainda são alarmantes os números da violência contra crianças e adolescentes no país. Ainda, os desafios são grandes na consolidação de uma atuação intersetorial articulada e prioritária, direcionada para a proteção de crianças e adolescentes, colocando-os a salvo de qualquer violência.
A concepção de que apenas leis não bastam foi confirmada por um relatório publicado pela Organização Mundial da Saúde, UNICEF e Unesco em junho de 2020. O Status Global sobre Prevenção da Violência contra Crianças apontou, a partir da autoavaliação de 155 países, que embora 88% deles possuíssem leis importantes para proteção das crianças contra a violência, em menos da metade deles (47%) essas leis estavam sendo fortemente aplicadas. Neste artigo serão elencados os desafios e apontada proposta para a implementação legal.
Garantir a implementação da farta legislação protetiva nacional, antes de mais nada, significa superar a histórica fragmentação no serviço público, com políticas ensimesmadas, trabalhando dentro de seu espaço, com pouca ou nenhuma articulação com outros serviços e equipamentos, muitas vezes até dentro da mesma instituição ou repartição. Significa ainda romper a tradicional e arraigada burocracia do diálogo através de ofícios e documentos e lograr instituir a cultura do trabalho em rede.
A implementação efetiva do artigo 227 da Constituição Federal e do ECA exige uma nova forma de atuação estatal, com políticas públicas articuladas entre si, e interlocução ativa e propositiva de todos os seus segmentos.
A política de atendimento do ECA exige a intervenção de diversos órgãos, serviços e equipamentos, cada um com atribuições específicas e diferenciadas, mas com igual responsabilidade na identificação das demandas e construção de planos de intervenção intersetorial para o atendimento integral e integrado de crianças, adolescentes e suas famílias (arts. 86 e 88).
No mesmo sentido, e visando o enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes, os artigos 13, parágrafo 2º, 70-A, II e VI e 208, XI, todos do ECA, com expressa menção a “intervenção em rede”, “integração”, “atuação conjunta”, “promoção de espaços intersetoriais”, “articulação de ações” e “programas integrados”. Também taxativo é o artigo 14 do Marco Legal da Primeira Infância (Lei 13.257/2016), que impõe a intersetorialidade e a atuação em rede para garantia do desenvolvimento integral infantil, com prioridade para as famílias em situação de risco (par. 2º).
Mas a grande oportunidade de mudança e de inauguração de uma nova forma de atuação, em consonância com a doutrina da proteção integral, chegou com a Lei nº 13.431/2017 e seu decreto regulamentador nº 9.603/18. Mais do que garantir os direitos infantojuvenis, a nova lei “normatiza e organiza o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, cria mecanismos para prevenir e coibir a violência, (…) e estabelece medidas de assistência e proteção à criança e ao adolescente em situação de violência” (artigo 1º). Tendo por pilares a prevenção, a proteção, a promoção e a participação, a legislação inova ao assegurar a voz da criança, inclusive no espaço de cuidado na rede de proteção através da “escuta especializada”.
Há ainda expressa determinação de “ações articuladas, coordenadas e efetivas” das políticas nominalmente citadas no art. 14 da Lei, reforçadas pelo artigo 9º do decreto. Referido artigo 9º esmiúça como materializar e dar concretude ao mandamento legal de trabalho em rede, estabelecendo como passo inicial a constituição de um “comitê de gestão colegiada”, indicando suas atribuições iniciais e perenes. Há ainda o reconhecimento expresso e inédito das figuras da “violência institucional” e da “revitimização”, com o estabelecimento de medidas que as evitem. Merece destaque ainda o rol de finalidades a nortear toda e qualquer intervenção do SGD, conforme artigo 3º do decreto.
“A verdadeira atuação em rede é uma experiência transformadora para todos os profissionais envolvidos, pois abre uma infinidade de possibilidades que a atuação individual e segmentada jamais conseguiria alcançar, e tem como premissas a incompletude institucional e a complementaridade das políticas. Há um provérbio que diz que a união faz a força. De fato, a união de conhecimentos e saberes transcende e viabiliza soluções mais ricas, completas e precisas, sendo valiosa forma de se atender ao comando constitucional do artigo 227”, conforme disposto no Guia Operacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes.
Partindo do entendimento de que o enfrentamento ao fenômeno da violência, tanto no campo individual, quanto no campo coletivo/estrutural, dá-se no âmbito das políticas públicas sociais e da rede de proteção, faz-se necessário refletir sobre a organização local dos serviços públicos que compõe a rede protetiva. Com esse espírito que o MPSP, em parceria com o Instituto Alana, lançou o referido Guia Operacional no ano de 2020 como uma proposta de dar concretude à legislação protetiva nacional. O documento visa guiar promotores e promotoras de justiça no fomento de políticas públicas municipais, promovendo a organização, articulação e coordenação dos serviços do município/território, a fim de garantir o desenvolvimento pleno das potencialidades de cada um deles e prover um atendimento mais integral, integrado e qualificado para crianças e adolescentes em situação de violência.
A partir do Guia foi dado início ao projeto para sua implementação, que hoje está em execução e conta com cerca de 70 promotores de justiça inscritos em todo o estado, pautados pela horizontalidade nas relações, atuação colaborativa e resolutiva, e engajamento dos vários atores locais. Experiências exitosas indicam a plena viabilidade da proposta, apesar do momento pandêmico. E o Ministério Público propõe-se a ser a força motriz na construção dos programas locais de enfrentamento transversal da violência contra crianças e adolescentes.