A Justiça do Espírito Santo julgou procedente o pedido de reconhecimento de socioafetividade e determinou que uma menina de 8 anos continue morando com os pais socioafetivos, tios dela, em vez do pai biológico. A decisão da 4ª Vara de Família de Vila Velha fixou a guarda compartilhada e o regime de convivência com o genitor, determinando também a retificação do registro civil da menina para que conste a multiparentalidade.
Desde a morte da mãe biológica, em 2013, a criança, então aos três meses de idade, ficou sob cuidados do irmão da falecida e da esposa deste. Naquele mesmo ano, o casal teve a guarda concedida na Justiça. Na ocasião, a menina havia sido registrada apenas pela genitora e, de acordo com os pais socioafetivos, nunca teve contato com o pai biológico.
Este, por sua vez, pleiteou a investigação de paternidade e a guarda da filha. O homem alegou, em contestação à reconvenção, que não se aproximou da filha por não ter o endereço do tio da menina. Morando em outra cidade, afirmou ainda reunir condições para ter a criança em sua companhia ao pedir fixação da residência consigo.
Em sua decisão, a juíza responsável pelo caso ressaltou que o ordenamento jurídico vigente valoriza a socioafetividade. Considerou a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – STF, que em repercussão geral fixou a Tese 622: "A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios".
Com base em testemunhos, observou que a criança nutre pelos tios o sentimento de filha e sabe, também, ser filha biológica do autor da ação. Por isso, a magistrada entendeu, com base no princípio do melhor interesse da criança, que os nomes deles também devem constar no registro civil como pais da menina, sem prejuízo da ascendência biológica.
Guarda compartilhada e convivência
Sobre a disputa de guarda, a juíza capixaba observou que a fixação da guarda unilateral só deve ser estabelecida em casos extremos, ao passo que “a distância física não é capaz de inviabilizar o compartilhamento do cuidado com a criança”. Atualmente, a família e o pai biológico vivem em cidades diferentes.
“Assim, tendo em vista que, tanto o pai biológico quanto os pais socioafetivos, possuem condições de gerir a vida da menor, não existindo nada que justifique a aplicação da guarda unilateral, estabeleço a guarda compartilhada entre pai biológico e os pais socioafetivos”, diz trecho da decisão.
A base de moradia da criança foi fixada com os pais socioafetivos, considerando o pouco contato do pai biológico com a infante. “Não é salutar para a menina retirá-la do convívio diário de seus pais socioafetivos com o objetivo de transferir sua moradia para uma cidade distante, à qual não está acostumada a viver”, destacou a magistrada.
A convivência estabelecida com o genitor é referente ao período de férias, aos fins de semana em que ele estiver na cidade de domicílio da filha e aos feriados e datas comemorativas especificados na decisão. Já o aniversário será desfrutado de forma alternada.
Consonância com o atual Direito das Famílias
A advogada Ana Paula Protzner Morbeck, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, atuou no caso representando os pais socioafetivos. Ela destaca que a sentença reconhecendo a multiparentalidade foi proferida após realização de estudos sociais e instrução processual.
Para Ana Paula, o entendimento da juíza vai ao encontro de valores contemporâneos do ordenamento jurídico brasileiro. “A decisão está em total consonância com o atual Direito das Famílias justamente por valorizar os laços de afeto, sem desconsiderar o vínculo biológico e o direito do genitor”, comenta.
Segundo a advogada, a decisão valorizou a afetividade. “[Na Repercussão Geral 622, citada na decisão], o STF se posicionou sobre a prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento da paternidade biológica. O Direito das Famílias vem se transformando ao longo do tempo, tomando novos formatos e novos contornos, sendo a multiparentalidade a expressão máxima dessa afirmação”, diz Ana Paula.
“A decisão proferida pela magistrada capixaba não só valorizou a multiparentalidade como buscou ainda manter os diversos vínculos da criança, tanto o biológico como o socioafetivo, com o estabelecimento da guarda compartilhada, ainda que a residência da criança seja fixada junto aos pais afetivos, dispondo ao pai biológico regime de convívio. Ou seja, vários institutos em prol do melhor interesse da menor e da manutenção dos afetos”, conclui a advogada.