Embora o Código Civil indique que o guardião que não detém a guarda deve supervisionar os interesses dos filhos, a possibilidade de solicitar informações acerca do bem-estar deles por meio do essencial direito e dever de fiscalização não é o suficiente para admitir o uso de prestação de contas para apurar gastos com pensão alimentícia.
Com esse entendimento, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça deu provimento ao recurso especial ajuizado por uma mãe que é alvo de processo movido pelo ex-marido, com objetivo de obrigá-la a prestar conta do uso da pensão alimentícia referente a um prazo de dois anos antes do ajuizamento da ação.
A alegação do pai é que, após o divórcio, a mãe passou a sonegar informações sobre o filho: não atende seus telefonemas, não retorna mensagens escritas, desautoriza-o a fazer contato direto com a escola onde a criança estuda e restringe a comunicação entre eles, impondo horários para conversas ao telefone.
O pedido se baseia no parágrafo 5º do artigo 1.583 do Código Civil, que institui essa responsabilidade de supervisão ao genitor que não detém a guarda. Segundo o pai, o intuito é exercitar o poder familiar que lhe é inerente: acompanhar suas atividades esportivas, escolares, extracurriculares etc.
A jurisprudência do STJ tem muitos precedentes indicando a inaplicabilidade da prestação de contas para pensão alimentar. A ideia é que, como o valor pago não pode ser devolvido, não adianta prestar contas, pois seria impossível apurar crédito em favor do pai.
Recentemente, no entanto, as duas turmas que julgam temas de Direito Privado admitiram, excepcionalmente, esse uso da prestação de contas. A 3ª Turma o fez em maio de 2020, em julgamento por maioria. A 4ª Turma seguiu o mesmo caminho em setembro de 2021, quando entendeu que indícios de mau uso da verba alimentar bastam.
O acórdão da 3ª Turma rendeu embargos de divergência, que não foram conhecidos precisamente pela adequação feita pela 4ª Turma. Relator, o ministro Antonio Carlos Ferreira apontou que não existe divergência de posicionamento entre ambas as turmas.
Uso excepcional
O novo caso julgado pelo colegiado indica uma consolidação jurisprudencial. Relator, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva — que ficou vencido no primeiro precedente — não cita o acórdão da 3ª Turma, mas faz referência à nova posição da 4ª Turma.
Ainda assim, incluiu que "excepcionalmente, admite-se o ajuizamento de ação própria quando presente a suspeita de abuso de direito no exercício desse poder".
Ele aponta que a via adequada para se questionar o valor da dívida alimentar é a ação revisional ou ação de modificação da guarda ou suspensão do poder familiar.
Isso porque a prestação de contas é ação proposta por quem deveria receber um balanço da administração de bens alheios, mas não a recebeu, bem como por aquele que a deveria prestar a outrem, porém se negou a fazê-lo. Não é o caso de quem recebe pensão alimentar, pois não há bens passíveis de restituição.
"Esse tipo de demanda não deve ser incentivada, sob pena de se patrimonializar excessivamente as relações familiares, sensíveis por natureza, especialmente em virtude da irrepetibilidade da verba alimentar e consequentemente, inexistência de crédito na forma mercantil, com a especificação das receitas e despesas. Ademais, a controvérsia poderá, no lugar de proteger, violar os interesses do menor vulnerável", afirmou o relator.
Segundo o ministro Cueva, ampliar o uso excepcional da prestação de contas em pensão alimentícia pode gerar ações judiciais por mero capricho ou perseguição, algo que não é raro na esfera das relações íntimas familiares.
"Permitir ações de prestação de contas significaria incentivar ações infindáveis e muitas vezes infundadas acerca de possível malversação dos alimentos, alternativa não plausível e pouco eficaz no Direito de Família", acrescentou.
Processo extinto
No caso concreto, o juízo de primeiro grau indeferiu a inicial de plano, entendendo que a ação de prestação de contas seria totalmente incabível. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais, por sua vez, devolveu o caso para tramitação com base na recente posição do STJ, a partir da interpretação do artigo 1.583, parágrafo 5º do Código Civil.
Com a decisão da 3ª Turma do STJ, a sentença fica restabelecida. O processo é extinto sem resolução de mérito.
"Eventual desconfiança sobre tais informações, em especial do destino dos alimentos que paga, não se resolve por meio de planilha ou balancetes pormenorizadamente postos, de forma matemática e objetiva, mas com ampla análise de quem subjetivamente detém melhores condições para manter e criar uma criança em um ambiente saudável, seguro e feliz, garantindo-lhe a dignidade tão essencial no ambiente familiar", disse o ministro Cueva.
A votação no colegiado foi unânime, conforme a posição do relator. Ele foi acompanhado pelos ministros Marco Aurélio Bellizze, Moura Ribeiro, Nancy Andrighi e Paulo de Tarso Sanseverino.