Ainda que o número de adoções concluídas tenha registrado queda de quase 10% entre 2019 e 2020, houve um aumento no número de crianças em processo de adoção no período, saindo de 901 para 1.401 casos. Os dados são do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento – SNA e revelam como a ampliação do uso da tecnologia durante a pandemia da Covid-19 trouxe benefícios para a Justiça da Infância e Juventude.
Entre os benefícios das ferramentas tecnológicas nesta seara, estão a realização de audiências por meio de vídeo, a capacitação da equipe técnica e a realização do estágio de convivência das crianças com as famílias habilitadas por meios virtuais – etapa que dá início ao processo de adoção.
A conselheira Flávia Pessoa, coordenadora do Fórum Nacional da Infância e da Juventude – Foninj, percebe que o Conselho Nacional de Justiça – CNJ vem incentivando o uso da tecnologia, um dos eixos da gestão do ministro Luiz Fux, por propiciar soluções que garantem agilidade e efetividade.
“Temos percebido, não apenas em casos de adoção e no socioeducativo, bem como em todas as demandas relativas ao infantojuvenil, que a tecnologia derruba barreiras e ‘desengessa’ o Judiciário. Dessa forma, é possível acessar dados, resolver conflitos e estabelecer conexões em qualquer lugar, a qualquer hora, de maneira disruptiva”, detalha.
Nova realidade
Segundo a juíza Noeli Reback, presidente do Colégio de Coordenadores da Infância e da Juventude, o trabalho da Infância e Juventude foi sustentado pelos parâmetros e orientações trazidos pelos atos normativos do CNJ. A digitalização dos processos e o acesso ao sistema remoto também tiveram papel fundamental para que os tribunais conseguissem se adaptar rapidamente à nova realidade imposta pela pandemia.
A adaptação à tecnologia permitiu que a área da Infância e Juventude passasse a realizar diligências on-line, além de acompanhar o estágio de convivência também por meio deste formato, o que facilitou o encontro de famílias e crianças disponíveis à adoção em estados diferentes. Noeli Reback destaca que o SNA sempre permitiu esse intercâmbio, mas, antes, havia a dificuldade do deslocamento, do tempo que era necessário que a família dispusesse para aguardar o trâmite do processo. Agora, crianças da Região Sul podem ser adotadas por famílias da Região Norte, por exemplo, criando vínculos pelas plataformas digitais.
De acordo com a juíza, os contatos iniciais estão acontecendo de forma remota, com adaptação tanto do adotando, quanto da criança ou do adolescente. “Não podemos ficar parados. As crianças não vão ficar esperando acontecer um milagre, a pandemia acabar, para que alguma providência seja tomada. E esse olhar da urgência tem sido implementado na Justiça da Infância e Juventude.”
Os cursos de preparação para a adoção, oferecidos aos pretendentes habilitados no SNA, também passaram a ser virtuais. O Paraná foi um precursor na realização do curso de adoção on-line, antes mesmo da pandemia. Atualmente, o evento já está em sua nona edição e reúne neste mês de outubro cerca de 2 mil inscritos de 22 unidades da Federação. “Muitos tribunais ofereciam esse treinamento apenas presencialmente, mas com o advento da pandemia, deram início ao encontro virtual. No ano passado, no Paraná, tivemos a participação de pretendentes de 24 estados. Isso mostra os benefícios da tecnologia.”
Também foi aprimorado o intercâmbio das equipes que trabalham com a Infância e Juventude, que se tornou mais colaborativo e integrado. “Se preciso de uma diligência e a equipe do tribunal não pode se deslocar até o bairro, mas há ali uma equipe do município, entramos em contato e pedimos ajuda. Isso é importante, porque aquela equipe já faz o acompanhamento da família e pode me dar impressões relevantes”.
Convivência
Apesar do registro de queda nos processos de adoção concluídos, a juíza Noeli Reback enfatiza que houve aumento da entrega das crianças que estavam em acolhimento para a guarda provisória, com o processo de convivência com as famílias habilitadas. Apenas no Paraná, 73 processos foram iniciados em 2020, além de concluídos outros 531.
“Nos preocupamos em reduzir o tempo de institucionalização das crianças. E nesse período pandêmico, percebemos que, em todo o Brasil, houve um movimento nesse sentido, resultando no aumento do início do processo de adoção, com a entrega das crianças para a guarda das famílias”, pontua a magistrada.
O aumento no número processos iniciados em 2020 também foi sentido por outros estados, como Minas Gerais, que registrou 193 casos, contra 102 em 2019; São Paulo, que iniciou 301 processos em 2019 e em 2020 454; e Rio Grande do Sul que deu início a 184 processos em 2019, mas em 2020 o número foi de 248.
Para Noeli, “os dados mostram que, mesmo na pandemia, houve um aumento de desacolhimento institucional das crianças, que foram para a guarda provisória. Isso mostra que o Judiciário nesse ambiente não parou um dia sequer”.
Em Pernambuco, a Vara da Infância e Juventude – VIJ de Jaboatão dos Guararapes registrou uma queda na média de adoções concluídas, que passou de 20, em 2019, para apenas nove casos no ano seguinte. Na esteira deste fenômeno, porém, registrou um aumento dos processos iniciados com o estágio de convivência, que estão sendo concluídos em 2021: até a primeira quinzena de outubro, já foram confirmadas quase 20 adoções.
Para a juíza titular da unidade, Christiana Caribé, os processos concluídos são reflexo do trabalho realizado durante a pandemia. Partindo do princípio da redução do tempo de acolhimento, a magistrada lembra que, assim que a pandemia começou, em março de 2020, realizou a entrega das crianças para a guarda provisória, a fim de substituir a institucionalização. “Os processos que davam segurança em relação ao resultado final foram antecipados.”
De abril em diante, os trabalhos foram se normalizando e os processos de destituição do poder familiar, concluídos. “Tenho entendimento de que não devo esperar o fim do processo para tirar uma criança da instituição, uma vez que o artigo 157 do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA autoriza o magistrado a conceder, em casos graves, a guarda provisória a pessoas idôneas. Então, analisei todos os processos e, com a Recomendação Conjunta CNJ n. 1/2020, e jurisprudências de outros tribunais, tirei as crianças e todas foram confirmadas em adoção.”
A juíza ressalta que o ato normativo que permitia a realização de audiências remotas foi publicado pelo CNJ em 17 de abril de 2020. No dia 23 daquele mês, a Vara de Jaboatão realizou sua primeira audiência virtual para a adoção de uma garotinha pelo SNA. “A criança já estava em guarda provisória, então, assim que foram autorizadas as audiências remotas, concluímos o processo de adoção”.
Reintegração familiar
A redução de acolhimentos em 2020 também se deve à reintegração das crianças às suas famílias de origem e a colocação em família extensa. Dados do SNA detalham que, em todo o país, 9.598 crianças e adolescentes foram reintegrados no ano passado.
Em Jaboatão, as 30 reintegrações registradas em 2020 foram resultado da realização das audiências e do trabalho da equipe técnica junto às famílias. Atualmente, há cerca de 60 crianças em acolhimento na cidade, que integra a região metropolitana de Recife. Uma das três instituições que recebem as crianças está com sua lotação máxima, com cinco grupos de irmãos.
A pandemia também acelerou o processo de funcionamento do acolhimento familiar na comarca. De acordo com Christiana Caribé, a legislação municipal que criou o serviço entrou em vigor em 2019, mas ainda estavam sendo preparadas as condições para dar início aos acolhimentos. Com a pandemia, os entraves foram resolvidos e as crianças puderam ser encaminhadas para essas famílias. Hoje, cinco crianças estão em acolhimento familiar e outras 10 famílias estão aptas a receber.
A juíza entende que o esforço empreendido pelas equipes ao longo da pandemia é fundamental. “As crianças não podem ficar esquecidas. Nosso sentimento é de alegria e satisfação de ter superado as dificuldades do momento, sem sequer termos sofrido aumento de nosso acervo. Conseguimos realizar o melhor trabalho que poderíamos e ainda contribuímos para que as crianças tivessem a garantia de um lar”.