A filha de um homem morto no ano passado, vítima da Covid-19, conseguiu na Justiça de Minas Gerais que fosse concedido o divórcio do pai. Com a morte dele, em novembro do ano passado, o processo havia sido extinto. Em decisão recente, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais – TJMG deu provimento ao recurso, considerando a separação de corpos e a manifestação expressa de ambas as partes a favor do fim do casamento.
Em 2014, o homem adquiriu um imóvel com recursos próprios e se casou meses depois. O relacionamento chegou ao fim em 2020, quando a então esposa pediu o divórcio e a partilha de bens, com reconhecimento de união estável antes do casamento, o que lhe daria direito ao imóvel. As informações referentes ao processo são do site Valor Econômico.
O homem contestou a alegação de união estável e a partilha de bens, mas morreu em novembro do ano passado, antes do julgamento do divórcio, cujo processo não foi concluído. A ex-esposa pediu então o bloqueio de metade dos bens do falecido, pensão ao Instituto Nacional do Seguro Social – INSS e o direito de permanecer na casa em que viviam.
O juiz da 6ª Vara de Família de Belo Horizonte extinguiu o pedido de divórcio, sem exame do mérito, com o entendimento de que, com a morte do marido, a sociedade conjugal foi extinta. A filha então recorreu, pedindo o divórcio post mortem, acatado pelo TJMG. O relator, desembargador Dárcio Lopardi Mendes, votou contra o recurso, mas foi vencido pelos votos dos desembargadores Ana Paula Caixeta e Renato Dresch.
“A morte de um dos cônjuges não é suficiente para superar ou suplantar o acordo de vontades anteriormente manifestado, o qual possui valor jurídico e deve ser respeitado, mediante a atribuição de efeitos retroativos à decisão judicial que decreta o divórcio do casal”, destacou Caixeta. “O óbito foi superveniente à manifestação do direito potestativo bilateral de separar, que dependia apenas de ato judicial deliberatório para transformá-lo em ato público”, acrescentou Dresch.
Decisão de 2018 abriu precedentes
A tese de divórcio post mortem é do advogado Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM. Ele atuou no caso em que o marido entrou com o pedido com partilha de bens, mas morreu no curso do processo. A questão foi inicialmente julgada sem resolução de mérito em razão da morte de uma das partes.
Na apelação, os pais do falecido alegaram que a ex-esposa havia declarado ser a favor do divórcio e já vivia em outro relacionamento. Em 2018, o TJMG concedeu o divórcio, com efeitos retroativos a 2016. “Essa importante decisão serve como paradigma e referencial para outros casos semelhantes”, observa Rodrigo.
Anos antes, a Emenda Constitucional 66/2010, formulada em parceria com o IBDFAM, instituiu o divórcio direto, que passou a ser visto como um direito potestativo. “Após a EC 66/2010, o único requisito para o divórcio é a vontade das partes, ou de apenas uma das partes, evidenciando a simplificação dos ritos procedimentais.”
“Atribuir o estado civil de viuvez a quem já tinha se manifestado, e até tentando concretizar o divórcio pela via judicial é perverter o espírito maior da lei, que deve sempre ser interpretada em consonância com outras fontes do Direito”, pontua o presidente do IBDFAM.
Reflexos da pandemia
O advogado Ricardo Gorgulho Cunningham, membro do IBDFAM, representou a filha do falecido no processo e elogia a decisão da 4ª Câmara Cível do TJMG. “O entendimento firmado é moderno, justo, evita o enriquecimento sem causa da ex-esposa e até mesmo uma fraude previdenciária”, comenta.
Ele explica que houve uma demora no processo motivada pela proliferação da Covid-19. “A pandemia interferiu no curso da ação de divórcio porque, naquele período, o Judiciário não foi célere o suficiente para se manifestar e homologar o pedido que era vontade das partes”, esclarece Ricardo.
O contexto de pandemia também é apontado por Rodrigo da Cunha Pereira como determinante para o Direito das Famílias no último ano. “Como disse Freud, é na intimidade que surgem os conflitos. Principalmente no período de pandemia, os casais passaram a conviver mais tempos juntos, devido à alteração na rotina dos trabalhos. Com isso, a pretensão do número de divórcios aumentou significativamente.”
“A pandemia ceifou muitas vidas. Por óbvio, algumas delas com pedido de divórcio já distribuído. Em alguns casos, especialmente naqueles em que as partes no curso do processo já tiverem manifestado o interesse e intenção do divórcio, que só não se concretizou em razão do trâmite do processo, é possível flexibilizar, a regra das sentenças constitutivas, para decretar o divórcio mesmo após a morte de uma das partes.”
Separação de fato marca fim da conjugalidade
O especialista afirma que, assim como a separação de fato marca o fim da conjugalidade para efeitos patrimoniais, inclusive, ela pode determinar o divórcio post mortem por uma interpretação principiológica. “Afinal, princípios são normas jurídicas, assim como regras/leis. Se há adoção post mortem, cujo desejo não se concretiza em vida, ele poderá ser feito após a morte.”
“O mesmo raciocínio se aplica ao divórcio. Deixar de se decretar o divórcio, quando uma, ou mesmo ambas as partes falecem no curso do processo, seja consensual ou litigioso é fazer da lei (regra jurídica) um fetiche, é inverter a relação sujeito/objeto, e apegar-se excessivamente à formalidade jurídica em detrimento de sua essência.”