Há um ano, o Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM noticiava as primeiras repercussões da pandemia da Covid-19 na vida das famílias brasileiras, e, doze meses depois, a proliferação da doença ainda impõe inúmeros desafios a toda a sociedade. Temas como a prisão civil do devedor de pensão alimentícia ainda preocupam e dividem opiniões no Direito das Famílias.
Atualmente, não há norma que regule o modo pelo qual deverão ser cumpridas as prisões civis de devedores de alimentos. A Recomendação 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça – CNJ e suas prorrogações vigoraram apenas até 12 de março de 2021. Já a Lei 14.010/2020, que instituiu o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado no período da pandemia, esteve restrita até 30 de outubro de 2020.
As medidas orientavam a exclusiva prisão domiciliar para os casos de dívida alimentícia, sem prejuízo da obrigação, em observância aos riscos do ambiente propício para disseminação do Coronavírus nos presídios brasileiros. Nesta semana, o contexto foi levado em consideração pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça – STJ. Para o colegiado, mesmo com fim do impedimento legal, ainda não é possível prisão fechada para devedor de alimentos.
Especialistas ouvidos pelo IBDFAM frisam que a transgressão da prisão civil, medida prevista no artigo 528, § 3º e seguintes do Código de Processo Civil – CPC (Lei 13.105/2015), pode levar ao inadimplemento alimentar, acirrando a vulnerabilidade de muitas famílias. Para eles, deve-se analisar caso a caso, considerando também o persistente perigo ocasionado pelo Coronavírus.
Prisão domiciliar é ineficaz, defendem especialistas
Para Conrado Paulino da Rosa, diretor nacional do IBDFAM, as recomendações do CNJ acabaram por incentivar as dívidas de pensões alimentícias. "Isso porque, sem a possibilidade da prisão, que deveria acontecer em regime fechado, impulsiona-se o inadimplemento das parcelas", defende.
Segundo o advogado, o momento pandêmico ainda gera quebras financeiras, cujas consequências poderão ser sentidas por longa data. Contudo, não se pode esquecer que aquele a quem foi determinado o pagamento de pensão em seu favor continua precisando do pagamento para sobreviver.
Para ele, a prisão domiciliar em um contexto em que toda a população segue a quarentena e o isolamento social é inócua. "Deixa de cumprir a finalidade coercitiva que, na prática, obriga continuamente ao alimentante de encontrar meios de garantir o sustento daqueles a quem a lei determina, justamente, para evitar seu aprisionamento", opina Conrado.
Ultrapassada a temporariedade do artigo 15 da Lei 14.010/2020, ao fim de outubro do ano passado, passou a ser possível e adequado o cumprimento da prisão, na visão do juiz João Adalberto Castro Alves, titular da 2ª Vara de Família e Sucessões de Porto Velho. Ele também considera ineficaz a prisão domiciliar, dado o atual contexto.
"Para o adimplemento do crédito alimentar, é possível a prisão do devedor de alimentos, dada a sua essencialidade, conforme prevê a Constituição Federal, no seu artigo 5º, inciso LXVII. As execuções de alimentos, a partir de novembro de 2020, retomaram o seu curso regular, com a decretação da prisão em regime fechado", explica o magistrado.
Ele destaca: "Ou seja, tanto as execuções que foram suspensas como as que foram propostas a partir de então (novembro de 2020) estão tendo trâmite regular, previsto no artigo 528 do CPC, com a decretação de prisão civil, em regime fechado, nos casos de não pagamento do débito alimentar ou não acatada a justificativa da impossibilidade de efetuá-lo".
Vulnerabilidade das famílias
Segundo João Adalberto, a pandemia acentuou a vulnerabilidade das famílias que necessitam da pensão para sobreviver. O aumento no inadimplemento nesses casos também ficou evidente, de acordo com o juiz. "A economia mundial passa por crise em razão da pandemia instalada desde 2020. Não seria diferente com as questões familiares. A crise econômica tem causado uma série de efeitos colaterais imensuráveis. Dentre as quais, a obrigação de prestar alimentos", frisa.
"O grande aumento do inadimplemento foi notado, e além das execuções promovidas, verificou-se o crescente número de pedidos de revisão de alimentos, que aportaram e aportam diuturnamente nos juízos familiares, buscando reduzir os alimentos pagos pelos alimentantes impactados pela crise pandêmica", assinala o magistrado.
Conforme a decisão recente do STJ, uma saída encontrada para o impasse é garantir ao credor decidir se será potencialmente mais eficaz o regime domiciliar ou o adiamento da medida para posterior prisão fechada. Nesses casos, contudo, ressalta-se que não há previsão do momento isso poderá ser efetivado, já que não se sabe por quanto tempo a pandemia ainda pode perdurar.
Alimentante preso não se isenta de pagamento de pensão
Recentemente, o IBDFAM noticiou outra decisão do STJ, reconhecendo que a prisão não isenta o alimentante do pagamento de pensão devido à possibilidade de exercer atividade remunerada no cárcere. O tema julgado pela Terceira Turma teve origem em ação de alimentos contra um encarcerado que não contribuía para o sustento do filho. Incapaz de arcar sozinha com a criação do infante, a mãe, que trabalha como diarista, necessitava da ajuda de familiares e amigos.
Conrado Paulino da Rosa apresenta opinião favorável à decisão. "Aquele que tem filhos, tendo como premissa o melhor interesse da criança e do adolescente, precisa ter consciência de que tem uma obrigação de sustento a qual, destaca-se, não se extingue com a maioridade do filho."
Ele acrescenta: "O aprisionamento do pai não é obstáculo para que este possa se desfazer de suas obrigações. Sobre isso, se for o caso, poderíamos ter o pagamento de pensão a partir do seu auxílio-reclusão, por exemplo, ou de eventuais rendas de imóveis que possua".
João Adalberto se coaduna ao entendimento da Corte, dada a vulnerabilidade do filho e o caráter essencial da verba alimentar. "Cediço, as questões familiares são analisadas caso a caso, baseando-se no trinômio proporcionalidade, necessidade e possibilidade, de modo a não onerar demasiadamente o alimentante que poderá ou não estar desenvolvendo atividade remunerada durante a segregação."
"Ademais, não se pode olvidar, que são públicas e notórias as dificuldades que o alimentante encontrará para ingressar no mercado de trabalho, situação que deverá ser considerada para o arbitramento dos alimentos. Entretanto, independentemente do valor, a obrigação permanece e deve ele pagar a pensão", avalia o juiz.
Momento convida à conciliação e ao diálogo
Ainda que o melhor interesse da criança e do adolescente deva ser o esteio das análises, os especialistas não perdem de vista a necessidade da observância casuística dado o momento de calamidade. Em março de 2021, a pandemia do Coronavírus atingiu a maior taxa de transmissão e de mortes no Brasil desde o início da proliferação do vírus no país.
A negociação é sempre a melhor alternativa, como frisa Conrado. "Todos os atores jurídicos, sejam de carreira pública ou privada, precisam utilizam dos métodos adequados de tratamento de conflitos, inclusive, de modo antecedente a qualquer ajuizamento, de forma a construir uma solução justa aos envolvidos. Afinal, nosso trabalho deve ser de facilitadores das relações familiares e, jamais, de instigadores do conflito."
João Adalberto frisa: "O incentivo à conciliação e diálogo continua sendo a melhor dinâmica nas questões familiares. As partes devem buscar uma solução colaborativa, cumprindo os deveres assumidos com a paternidade, atendendo as necessidades dos alimentandos, observando – ambos os lados – o dever de lealdade".
O juiz diz que, por mais que os alimentos sejam indispensáveis à sobrevivência daqueles que os necessitam, sendo um dever indeclinável de quem deve prestá-los, as partes podem e devem se ajustar às possibilidades que o momento oportuniza, desprendendo-se de uma situação anterior que não mais existe. "A inflexibilidade prejudicará sempre a parte mais vulnerável", defende o magistrado.
"A crise pandêmica afeta a vida econômica de milhares famílias que, sem emprego ou diminuição da renda, vêm enfrentando sérias dificuldades para se sustentarem, atingindo tanto aquele que recebe alimentos, quanto o que paga. Nesta situação, tanto o devedor quanto o credor podem propor a revisão momentânea desse encargo para que a possibilidade de quem paga e a necessidade de quem recebe sejam revistas de forma justa e adaptada ao momento vivenciado", conclui João Adalberto.