Com base na decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que considerou crime não recolher ICMS declarado, promotores começam a oferecer denúncias contra empresários que devem outros impostos, como ISS e IPI. O precedente da 3ª Seção também é utilizado por Ministérios Públicos de vários Estados, como São Paulo, Bahia e Santa Catarina, além do Distrito Federal, para tentar reverter decisões contrárias, por meio de recursos, e reforçar a tese nos processos em andamento.
"Já soube de pessoas intimadas para o pagamento de IPI", afirma o advogado Davi Tangerino, sócio do escritório DTSC Advogados. Ele ainda considera que, após a decisão do STJ, há maiores chances de empresários já autuados serem acusados por apropriação indébita, mesmo que ainda discutam a validade de débitos na esfera administrativa tributária. "Agora o risco é maior de, um dia para outro, uma decisão empresarial de deixar de pagar imposto, por causa de um eventual problema de caixa, virar crime."
Essa atuação dos procuradores poderá elevar a arrecadação. Isso porque uma das alternativas para os empresários escaparem da pena de detenção, de seis meses a dois anos, além de multa, é quitar a dívida. Na Bahia, por exemplo, os débitos declarados e não pagos de ICMS, nos últimos cinco anos, somam R$ 983,2 milhões e envolvem 3.545 contribuintes.
Por nota, a Secretaria da Fazenda (Sefaz) baiana afirma que o trabalho conjunto com o Ministério Público do Estado já permitiu a recuperação de R$ 141,5 milhões. Agora, com a solidificação do entendimento de crime no STJ, o órgão espera que a arrecadação espontânea também suba "ao intensificar nos contribuintes a percepção de risco ao se apropriarem dos valores dos impostos, deixando de repassar os recursos ao Estado e impedindo que estes sejam aplicados em benefício da sociedade".
A situação atual só mudará se o Supremo Tribunal Federal (STF) julgar de modo diferente. A Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina, que atua no caso do STJ, já apresentou recurso contra a decisão. "Enquanto o STF não mudar esse entendimento absurdo, o ideal é propor uma ação de revisão criminal ou habeas corpus", diz Tangerino. Ele destaca que, a partir da lógica do STJ, mesmo se uma empresa tomar um calote de clientes e, por isso, não pagar o imposto, corre o risco de ser acusada por crime.
A tese do STJ foi firmada em agosto, quando os ministros da 3ª Seção, por seis votos a três, negaram o pedido de habeas corpus (nº 399.109) de dois empresários catarinenses. Na ocasião, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca citou a decisão do Supremo que excluiu o ICMS do cálculo do PIS e da Cofins para justificar seu voto pela condenação. Na análise sobre a base de cálculo das contribuições federais ficou decidido que o ICMS não é parte da receita da empresa, mas valor que deve ser repassado ao Estado.
De acordo com o subprocurador-geral de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, Sérgio Antonio Bastos Sarrubbo, a declaração do contribuinte de quanto deve de ICMS não significa que ele não tem a intenção (dolo) de não pagar. "O contribuinte pode declarar que deve e usar outras fraudes para não efetuar o pagamento, por exemplo, ocultando seus próprios bens", diz.
Em São Paulo, o Ministério Público recebe informações da Secretaria da Fazenda do Estado sobre contribuintes que declararam e não recolheram o imposto. "Agora, não tenho dúvida de que a mesma tese analisada pelo STJ pode ser usada para todos os tributos em que se é obrigado a declarar, como o ISS", afirma Sarrubo.
Vários Estados aguardavam a definição do STJ para reforçar a atuação na área tributária, segundo Rubin Lemos, da 3ª Promotoria de Defesa da Ordem Tributária do Distrito Federal. "A decisão da 3ª Seção do STJ ratifica nosso posicionamento. Vamos usá-la nos memoriais e alegações finais dos processos em andamento", diz.
Para Lemos, geralmente, empresas que declaram e não pagam imposto usam a medida como uma forma de financiamento, a custo zero. "Se há dolo, é apropriação indébita de valores do erário para aumentar o próprio faturamento", afirma.
No Distrito Federal, os proprietários do Supermercado Super Maia, por exemplo, foram condenados recentemente por mais de R$ 100 milhões declarados de ICMS e não pagos. O advogado que representa o contribuinte no processo, Paulo Emílio Catta Preta, prepara recurso contra a condenação. "Defendemos que não se configura apropriação indébita tributária no caso do Super Maia, assim como em diversos outros de comerciantes, porque não há omissão fraudulenta", diz.
No caso, segundo Catta Preta, não houve pagamento do imposto por causa de uma crise financeira comprovada. "Tanto que entraram em recuperação judicial e, hoje, vendem ativos particulares para pagar os credores. A crise financeira afasta a culpabilidade, o dolo e, portanto, a existência do crime", afirma.
Para o advogado, o entendimento do STJ foi fundamental para a condenação do Super Maia, proferida quase que em seguida da decisão dos ministros. Mas o advogado acredita na possibilidade de reversão. "Segundo a Constituição Federal, a única possibilidade de prisão por inadimplência ocorre na falta de pagamento de pensão alimentícia (artigo 5º, inciso 67)". É esse, aliás, o argumento do recurso da Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina contra a decisão do STJ (ver abaixo).
Entre os empresários, a preocupação não atinge só o setor do comércio, mas vários segmentos da indústria, segundo o advogado João Augusto Gameiro, do escritório Trench Rossi e Watanabe. "A maioria quer entender como isso vai afetar a fiscalização que sofrem. E procuram advogados da área fiscal para analisar o risco da operação deles e se prevenir contra eventuais problemas, já que essa decisão do STJ enfraquece a tese de defesa dos empresários", afirma.
Também para Gameiro, o MP pode tentar aplicar a tese do STJ a tributos que seguem a mesma lógica do ICMS. "Após a Operação Lava-Jato, o ambiente das autoridades em geral, do Ministério Público ao Judiciário, é mais repressor. E isso está se refletindo na esfera tributária", diz.