O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, conduziu nesta segunda-feira (11) audiência aberta ao público para ouvir partes interessadas em discutir o enquadramento da conduta de não recolhimento de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) próprio, regularmente declarado pelo contribuinte, no tipo penal de apropriação indébita. A matéria é tratada no Recurso Ordinário em Habeas Corpus (RHC) 163334.
Complexidade
Segundo o relator, a sensibilidade da controvérsia demanda uma reflexão detida sobre a eficácia dos meios atuais de arrecadação tributária e os limites da política criminal tributária. Por isso, designou a reunião, que reuniu os representantes das partes, terceiros admitidos no processo e órgãos públicos diretamente interessados.
“A questão, evidentemente, transcende o mero interesse das partes envolvidas nesse HC”, assinalou Barroso na abertura do encontro. “Como há muitas questões criminais, tributárias e fiscais envolvidas, me pareceu bem, antes de tomar uma decisão, ouvir o conjunto de pessoas aqui presentes”.
Expositores
Pela não criminalização, falaram na audiência Igor Santiago, advogado do réu Robson Schumacher; o defensor público do Estado de Santa Catarina, atuando em nome de Vanderleia Schumacher; Alexandre Ramos, em nome da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp); Odel Antun, pelo Sindicato Nacional das Empresas de Telefonia e Serviço Móvel Celular e Pessoal (SindiTelebrasil); Kyioshi Harara, pela Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo de São Paulo (Fecomércio-SP); e Pedro Ivo Gricoli Iocoi, em nome da Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG).
Defenderam a possibilidade de penalização do não recolhimento do ICMS declarado como apropriação indébita tributária a subprocuradora da República Cláudia Marques, em nome do Ministério Público Federal; Giovanni Franzoni, pelo MP catarinense; Luciana Oliveira, procuradora do Distrito Federal, que falou em nome das Procuradorias-Gerais do Estados e do DF; Fábio de Souza Trajano, procurador-geral de Justiça de Santa Catarina, pelas Procuradorias-Gerais de Justiça dos Estados; e, por fim, Luís Cláudio Carvalho, secretário da Fazenda do Rio de Janeiro, representando as Secretarias de Fazenda dos Estados.
Cada um teve 10 minutos para expor seus pontos de vista sobre a matéria. Em diversas ocasiões, o ministro fez perguntas aos expositores, a fim de aprofundar a discussão.
Distorção
Ao encerrar a reunião, o ministro Barroso destacou o conjunto de manifestações extremamente qualificadas e proficientes e afirmou que todas serão levadas em consideração na sua decisão. Segundo o ministro, o sistema tributário brasileiro é provavelmente o mais complexo do mundo. “O compliance tributário demanda uma enorme quantidade de tempo, e nenhuma análise relativa à questão fiscal deve ser indiferente à complexidade do sistema”, afirmou.
O relator do HC acredita que há uma “imensa distorção” no sistema, que é a ênfase no imposto sobre consumo, “um tributo indireto e que não consegue distribuir renda” e que incide igualmente sobre todos os consumidores. Barroso observou que a exacerbação do direito penal “talvez não seja o caminho ideal nas circunstâncias atuais do Brasil”, mas ponderou que o não recolhimento dos impostos, embora possa ser um bom negócio para quem o pratica, é altamente prejudicial ao país e que a criação de vantagens competitivas para quem não age corretamente também não é desejável. “São muitas variáveis relevantes e complexas a serem levadas em conta”, concluiu.
O caso
O RHC 163334 foi impetrado pelos proprietários de lojas de roupas em Santa Catarina denunciados pelo Ministério Público estadual (MP-SC) por não terem recolhido aos cofres públicos, no prazo determinado, os valores apurados e declarados do ICMS em diversos períodos entre 2008 e 2010. A soma dos valores não recolhidos, na época, era de cerca de R$ 30 mil.
Na denúncia, o MP-SC enquadrou a conduta como crime contra a ordem tributária nos termos dos artigos 2º, inciso II, e 11, caput, da Lei 8.137/1990 – deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos.
Os empresários foram absolvidos pelo Juízo de Direito da Vara Criminal da Comarca de Brusque (SC) por atipicidade dos fatos narrados na denúncia. Contudo, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC), no exame do recurso do MP-SC, determinou o prosseguimento da ação penal.
Consciência
Visando ao restabelecimento da sentença absolutória, foi impetrado HC no Superior Tribunal de Justiça (STJ), que denegou a ordem. Para a maioria dos ministros da Terceira Seção do STJ, o fato de o agente registrar, apurar e declarar o imposto devido não afasta a configuração do delito de apropriação indébita tributária, que não tem como pressuposto a clandestinidade. Segundo a decisão, basta a conduta dolosa consistente na consciência, ainda que potencial, de não recolher o valor do tributo devido. “A motivação não possui importância no campo da tipicidade”, concluiu aquela corte.
Atipicidade
No RHC, os empresários sustentam que a simples inadimplência fiscal não caracteriza crime, pois não houve fraude, omissão ou falsidade de informações ao fisco. Mesmo que se admitisse a caracterização do crime tributário, a defesa argumenta que a responsabilidade penal dependeria da demonstração de que os denunciados efetivamente repassaram o ônus econômico aos consumidores, o que não ocorreu. Segundo a argumentação, o TJ-SC e o STJ teriam criado “uma nova hipótese de criminalização via jurisprudencial, em clara ofensa à legalidade penal”.