Ativos digitais entram na partilha de casais divorciados

Fonte: O Globo
15/02/2022
Direito de Família

O divórcio se arrastou por oito anos, quase tanto quanto o casamento. O casal rico de São Francisco discutiu sobre pensão alimentícia, os lucros da venda da empresa de software do marido e o destino de sua casa de US$ 3,6 milhões. Mas a batalha judicial mais árdua entre Erica e Francis deSouza diz respeito a uma disputa sobre milhões de dólares em bitcoins, como informa o New York Times.

DeSouza, um executivo de tecnologia, comprou pouco mais de 1.000 bitcoins antes de se separar de sua esposa em 2013 e depois perdeu quase metade dos fundos quando uma importante plataforma de criptomoedas entrou em colapso.

Segundo o Times, após três anos de litígio, um tribunal de apelações de São Francisco decidiu em 2020 que deSouza não divulgou adequadamente alguns detalhes de seus investimentos em criptomoedas, que explodiram em valor. O tribunal ordenou que ele desse a Erica mais de US$ 6 milhões dos bitcoins que sobraram.

Nos círculos legais, o caso dos deSouzas ficou conhecido como talvez o primeiro grande divórcio do bitcoin. Tais disputas conjugais são cada vez mais comuns.

À medida que as criptomoedas ganham maior aceitação, a divisão do estoque da família se transformou em uma grande fonte de discórdia, com casais distantes trocando acusações de engano e má gestão financeira, como mostra o Times.

Dificuldades de rastreamento

Um divórcio conturbado tende a gerar discussões sobre praticamente tudo. Mas a dificuldade de rastrear e valorizar a criptomoeda, um ativo digital negociado em uma rede descentralizada, está criando novas dores de cabeça.

Em muitos casos, disseram os advogados do divórcio, os cônjuges subnotificam suas posses ou tentam esconder fundos em carteiras online que podem ser difíceis de entrar.

— Originalmente, estava debaixo do colchão e depois foi a conta bancária nas Ilhas Cayman. Agora é criptomoeda — disse Jacqueline Newman, advogada de divórcio em Nova York que trabalha com clientes de alto patrimônio, ao Times.

A ascensão das criptomoedas forneceu um meio de troca útil para criminosos, criando novas oportunidades de fraude. Mas os ativos digitais não são indetectáveis. As transações são registradas em livros públicos chamados blockchains, permitindo que analistas experientes acompanhem o dinheiro.

Detetives das criptos

A reportagem do jornal mostra que alguns advogados de divórcio passaram a confiar em uma crescente indústria de investigadores forenses, que cobram dezenas de milhares de dólares para rastrear o movimento de criptomoedas como bitcoin e ether de exchanges online para carteiras digitais.

A empresa investigativa CipherBlade trabalhou em cerca de 100 divórcios relacionados a criptomoedas nos últimos anos, disse Paul Sibenik, analista forense da empresa ao jornal. Em vários casos, ele disse, ele rastreou mais de US$ 10 milhões em criptomoedas que um marido escondeu de sua esposa.

— Estamos tentando torná-lo um espaço mais limpo. É preciso haver algum grau de responsabilidade — disse Sibenik.

Em entrevistas, quase uma dúzia de advogados e investigadores forenses descreveram casos de divórcio em que um cônjuge – geralmente o marido – foi acusado de mentir sobre transações de criptomoedas ou ocultar ativos digitais.

Nenhum dos casais concordou em dar entrevista ao Times. Mas alguns dos divórcios criaram rastros de papel que esclarecem como essas disputas se desenrolam.

Pistas

Os deSouzas se casaram em setembro de 2001. Nesse mesmo ano, deSouza fundou uma empresa de mensagens instantâneas, a IMlogic, que acabou vendendo em um acordo que lhe rendeu mais de US$ 10 milhões, segundo registros do tribunal.

Os investimentos em criptomoedas de deSouza datam de abril de 2013, quando ele passou um tempo em Los Angeles com Wnces Casares, um dos primeiros empreendedores de criptomoedas, que o apresentou em ativos digitais.

Naquele mês, deSouza comprou cerca de US$ 150 mil em bitcoin, informa o jornal.

Os deSouzas se separaram no final daquele ano, e deSouza logo revelou que era dono do bitcoin. Quando o casal estava pronto para dividir seus ativos em 2017, o valor desse investimento havia aumentado para mais de US$ 21 milhões.

Mas havia um problema. Naquele dezembro, deSouza revelou que havia deixado um pouco menos da metade dos fundos em uma plataforma de criptomoedas, a MT. Gox , que faliu em 2014, colocando o dinheiro fora de alcance.

Em documentos judiciais, os advogados de Erica disseram que era "notório" que seu marido não mencionou anteriormente que tanto do bitcoin havia desaparecido, e argumentaram que sua gestão secreta do investimento custou alguns milhões de dólares.

Segundo reportagem do Times, eles também especularam que deSouza pode estar acumulando fundos adicionais.

"Francisco tem sido menos que direto com suas histórias em constante mudança"afirmaram os advogados de Erica em um dos processos.

Nenhum esconderijo secreto jamais se materializou. Uma porta-voz de deSouza disse que ele havia divulgado a totalidade de suas participações em criptomoedas no início do divórcio.

— Assim que Francis soube que o bitcoin estava envolvido na falência de Mt. Gox, ele contou à sua ex-esposa. Se a falência do Mt. Gox não tivesse ocorrido, a divisão do bitcoin teria sido totalmente incontroversa — disse a porta-voz ao jornal.

Erica se recusou a comentar por meio de seu advogado.

Violação das regras

Mas o tribunal de apelações descobriu que deSouza, que agora é o presidente-executivo da empresa de biotecnologia Illumina, violou as regras do processo de divórcio ao não manter sua esposa totalmente informada sobre seus investimentos em criptomoedas.

Ele foi ordenado a dar a Erica cerca de metade do número total de bitcoins que ele possuía antes da falência da Mt. Gox, deixando-o com 57 Bitcoins, no valor de aproximadamente US$ 2,5 milhões a preços de hoje. Os bitcoins de Erica  agora valem mais de US$ 23 milhões.

'Pequenas causas'

Nem todos os divórcios criptográficos envolvem somas tão grandes.

Alguns anos atrás, Nick Himonidis, um investigador forense em Nova York, trabalhou em um caso de divórcio no qual uma mulher acusou o marido de subnotificar suas participações em criptomoedas.

Com a autorização do tribunal, Himonidis apareceu na casa do marido e vasculhou seu laptop. Ele encontrou uma carteira digital, que continha cerca de US$ 700 mil da criptomoeda Monero.

— Ele ficou tipo: 'Ah, essa carteira? Eu não achava que tinha isso' — lembrou Himonidis ao Times.

Em outro caso, disse Himonidis, ele descobriu que um marido havia retirado US$ 2 milhões em criptomoeda de sua conta na Coinbase , uma plataforma onde as pessoas compram, vendem e armazenam moedas digitais, informa o Times.

Uma semana depois que sua esposa pediu o divórcio, o homem transferiu os fundos para carteiras digitais e depois deixou os Estados Unidos.

Um tribunal pode ordenar que uma plataforma de criptomoedas entregue fundos. Mas as carteiras online nas quais muitos investidores armazenam criptomoedas não estão sujeitas a nenhum controle centralizado e o acesso requer uma senha exclusiva criada pelo proprietário da carteira.

Sem essa chave digital, os fundos do marido estavam efetivamente fora do alcance da futura ex-mulher.

Em alguns divórcios, o estoque de criptomoedas acaba sendo minúsculo ou até inexistente. Vários advogados descreveram ao Times casos em que as suspeitas de uma esposa eram infundadas.

Mas repetidamente, disse Kelly Burris, advogada de divórcio em Austin, Texas, que representa principalmente maridos, homens entraram em seu escritório e detalharam seus planos para esconder criptomoedas.

— Eles podem ser estranhamente não criativos — disse Burris ao jornal.

Burris é uma presença constante no circuito de palestras da indústria do divórcio, onde ela fala sobre os desafios de rastrear ativos digitais. Em alguns casos, ela disse, seus clientes homens propuseram fraudes um pouco mais sofisticadas, como usar um caixa eletrônico de criptomoedas para comprar Bitcoin com dinheiro.

— Eles estão pensando: 'Não há como ela rastreá-lo'. Não há como ela ter acesso — complementa a advogada.

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